sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Papel arroz

Papel arroz
Grupo Poeco – Só Poesia, agosto 1981

A Regina Vater,
Virgínia Claudino,
Moema Cardoso
e minha mãe, Maria Thereza


Céu ainda mais longe

Lunares, indiretos, os poemas de Thereza Christina jorram como a Lua incandescida pelo Sol, num lago qualquer. A cada passo, a poesia a espreita: modo de ver especular, por fulgurações e rupturas, quase sempre noite e reflexos de luz, dentro. Extravasa do poeta, no mistério de um alaúde que não há, ferindo de "morte súbita" a madrugada. E então é murmúrio de prece noturna nas paredes de solidão.
Thereza Christina tem a face de seus poemas: lunar, com o seu quê de penumbra no branco, com suas explosões tão súbitas, subvertendo o ritmo contido. Às vezes, revolta-se com a miragem ao espelho de sua alma e busca deitar ao chão "tão indignas/ tão estranhas palavras". Mas ninguém, nem mesmo ela, a desvia do caminho, dessas paisagens que são um lento perpassar fora e dentro, tal como se a terra fosse um caminho de veias e o horizonte, seus olhos e a demanda de seus olhos "de um céu ainda mais longe", retornando por um instante aos vales do coração.
Poesia cósmica e interior, alquimia de sentimento e paisagem, luz e sombra, é o microcosmo refletindo o macrocosmo num jogo de ser passivo, forte e suavemente feminino, espelho de uma luz vivíssima. A postura essencial de seus poemas bem poderia ser traduzida na imagem da orante atemporal, impregnada de fé na beleza, através de sofrimento e frêmito.

Dora Ferreira da Silva
Abril de 1981



Ársis

O acaso das horas
dentro das noites dormidas
esperam o desfolhar de auroras.

A vida presa nas mãos
esvazia-se
deixando passar o suor
pela face do vidro.

E eu, espalmada e inerte,
deslizo pelo gargalo
estreito -
fome passada e presente.



Bicharre

A Kahlil Gibran

Cidade e terra
caminhos e veias.

Névoas
rios
homens
e mar.
Montes
e um horizonte distante
de um céu ainda mais longe.

E o sonho de retornar
aos vales
pulsando no coração.


Fio partido

Nos braços,
o pequeno filho adormecido,
ausente, longe para sempre
deste tempo.
Tal folha seca que ousa
deixar-se levar pelo vento.
Carrego-o na última viagem ao abismo
contando-lhe as histórias
do que a morte faz com a vida.
E do alto, lanço-o ao mar
– a fria pedra viva.

Ó grande Calunga!
Arrebata a lâmina certeira
que abre meu ventre em chaga.
Leva contigo a única flor
que brotou do seio da noite.
Afoga o peito
em teu leito ensimesmado
e faz-me esquecer
do súbito adeus...


Sentinela

Calo-me
se for preciso
para ouvir
o inaudível.
E dentro do silêncio
turbado
jorram meus olhos
a infinitude que não vêem.


Verso reto

Existe mais poesia
na carne fria
nos olhos vazios
sobre a tarde.

Existe um fino tato
no corpo ausente
na pele intacta
na fronte pálida
e esquecida.

Existe um ar quente
sobre as nódoas
da casca
da árvore
do fruto
da fome.

Existe um espelho
onde nos miramos:
imagem.


Refúgio

Passeio
- passo distraído
e me escondo
enquanto divaga o olhar.
Caminho
- passo preciso
e esqueço
que o sol acende por último
a primeira chama da noite.
E emborco
- corpo vazio
em alguma réstia de solidão.